24/05/2010

olá e adeus

OLÁ é o que dizemos quando chegamos.
OLÁ, diz-se quando olhamos pela primeira vez,
(seja ela a primeiríssima ou as restantes infinitas)
OLÁ e um aperto de mão.
OLÁ e um sorriso inquieto.
OLÁ e talvez um ATÉ AMANHÃ, quem sabe;

...é que vamos dizemos no espaço e tempo que existe entre o OLÁ e o ADEUS.
...é definitivamente um espaço mais que vazio,
é uma caixa negra, sem fundo, onde metemos tudo lá dentro.
Tudo o que interessa, não nos diz nada, que gostamos ou não.
É um espaço, interminavelmente incompleto.
Bonito, por vezes, estranho e incómodo noutras,
podemos fazer o que quisermos nele.
Enche-lo ou deixá-lo livre para outros.
Olhar lá para o seu fundo é uma tentativa vã, não existe tal fundo.
...é o mesmo que dizer, COMPLETA-ME.
COMPLETA-ME porque não estou satisfeito
COMPLETA-ME para sermos felizes
COMPLETA-ME e ...
...é um todo, um todo.

ADEUS.
o ADEUS acontece por vezes, sim
o ADEUS fica no fim da linha.
o ADEUS sabe bem onde termina,
onde fica sem ar.
o ADEUS, é um ser triste e solitário,
um ADEUS tem cor cinzenta e cheira a bafio.
o ADEUS é o mais concreto de todos os fins.
ADEUS a ti que te amo
ADEUS a mim que me perdi
ADEUS ao boneco de dormir ( sim, porque temos de crescer! )
ADEUS a um nós que nunca existiu.
ADEUS, sim, ADEUS.

e depois? há mais ?

05/05/2010

( dorme, dorme, dorme, bem amado, meu querido, meu doce, meu bom e terrível amado... Dorme. Dorme e conserva a tua força, meu homem, meu homem. )

Howard Fast, in Spartacus

01/05/2010

Clã

"Vamos juntos lamber o céu" - Clã

Where?

Quando se transformam homens em bestas, eles não pensam em anjos.

Howard Fast
Que é o Inferno? O Inferno começa quando os actos simples e necessários da vida se tornam abomináveis, é uma experiência que conheceram todas as épocas, os homens que provaram o Inferno que os outros homens criaram sobre a Terra. Torna-se horrível agora caminhar, respirar, ver, pensar.

Howar Fost, in Spartacus
Tenho pensado muito em ti sem querer.
Tenho pensado demasiado sem te querer sequer ter.
Sim, tenho tentado responder a mim mesma
o porquê de não me abandonares os dias,
de não te perderes por Saras longínquos de forma a
passares à mínima nulidade;
seres um 0, um nada, vá, talvez um mero átomo, mas longe
por forma a também não me enjoares com a tua insignificante presença.
A náusea do teu cheiro segue-me, deixas um rasto nojento,
um rasto de morte: a flores. É teu.
O nojo de o sentir no inconsciente, que não me larga
que me atormenta como uma comichão num membro inexistente.
De te amar e te mandar embora( todos os dias ) porque sei que não te quero.
Mete-me tanto nojo não compreender o porquê. Porque é que nascestes em mim?
Como fui eu deixar tal coisa? e como não te consigo matar por fim?
Credo... náuseas!

29/04/2010

UTOPIA

Quando chego a casa tenho ainda que fazer companhia à minha mulher, tagarelar com os meus filhos e falar com os criados. Considero estas coisas como parte dos meus afazeres, pois têm necessariamente de ser feitas para que um homem não se torne um estranho na sua própria casa. Para mais, um homem sábio e prudente deve ordenar as suas coisas e dispor da sua pessoa de modo a que sempre pareça alegre, amável e jovial no trato e aqueles que a natureza, o acaso ou a escolha lhe deram como amigos e companheiros da sua vida. E também de maneira a não se tornar desagradável pela familiaridade e gentileza excessivas e que, pela demasiada benevolência, se não torne escravo dos seus servos. Assim, entre as ocupações que referi, se me escapa o tempo, os dias, os meses, os anos.

Thomas More

ARTE DE AMAR

Guarda-te de tudo quanto é vedado! Para seres amado
sê amável,
coisa que te não darão apenas ao rosto ou à beleza.
Ainda que sejas Nireu, a quem o velho Homero amava
ou o delicado Hilas, arrebatado pelo crime das Náiades,
para conservares a tua amada e não teres a surpresa de ser por ela abandonado,
junta os bens do espírito às qualidades do corpo.
A beleza é um bem frágil; à medida que vão avançando os anos,
vai diminuindo e, por força da idade, vai murchando;
não ficam todo o tempo em flor as violetas nem os lírios de pétalas abertas,
e a roseira, depois de cair em flor, enrijece de espinhos, que é o que lhe resta.
Também a ti, ó jovem esbelto, te hão-de chegar os cabelos brancos,
e logo virão as rugas a sulcar-te o corpo. (...)
Vamos, pois, receia confiar-te a uma beleza ilusória
sejas quem fores, e dá valor a algo mais do que o corpo.

Ovídio.

19/04/2010

" somos todos escravos de circunstâncias externas " FP

" não ao prazer; não à glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade " FP
" a consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência " F.P
" A terra é imensa, a guerra é ainda maior " Mia Couto

18/04/2010

o Fim

Isto é violência na terceira idade, sabem porquê, porque o nosso inimigo é o corpo. porque o corpo é o que nos ataca. estamos finalmente perante o mais terrível dos animais, o nosso próprio bicho, o bicho que somos. que decide que é chegado o momento de começar a desligar-nos os sentidos e decide como e quando devemos padecer de que tipo ou loucura. pois eu que tenho cem anos e podia quase ser vosso pai quero dizer-vos que ser-se velho e viver contra o corpo. o estupor do bicho que nós somos e que já não nos suporta mais, a violência na terceira idade.


V.Hugo Mãe, in A máquina de fazer Espanhóis

Terra Sonâmbola, de Mia Couto

Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão serão ainda piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da esperança. Não mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca de paz. Mesmo que os reencontreis eles não vos reconhecerão. Vós vos convertestes em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós. Agora, a arma é a vossa única alma. Roubaram-vos tanto que nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de estranhos. Será mil vezes pior que o passado pois não sereis o rosto dos novos donos e esses patrões se servirão de vossos irmãos para vos dar castigo. Ao invés de combaterem os inimigos, os melhores guerreiros afiarão as lanças nos ventres das suas próprias mulheres. E daqueles que vos deveriam comandar estarão entretidos a regatear migalhas do banquete da vossa primeira destruição. E até os miseráveis serão donos do vosso medo pois vivereis no reino da brutalidade. Terão de esperar que os assassinos sejam mortos por suas próprias mãos pois todos haverá medo da justiça. A terra se revolverá e os enterrados assomarão à superfície para virem buscar as orelhas que lhes foram decepadas. Outros, procurarão seus narizes no vómito das hienas, e escavarão nas lixeiras para resgatarem seus antigos orgãos. E há-de vir um vento que arrastará os astros pelos céus e a noite se tornará pequena para tantas luzes explodindo sobre as vossas cabeças. As areias se voltarão em remoinhos furiosos pelos ares e os pássaros tombarão extenuados e ocorrerão desastres que não têm nome, as machambas serão convertidas em cemitérios e das plantas, secas e mirradas, brotarão apenas pedras de sal. As mulheres mastigarão areia e serão tantas e tão esfaimadas que um buraco imenso tornará a terra oca e desventrada. No final, porém, restará uma manhã como esta, cheia de luz e se escutará uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes de sermos gente. E surgirão os doces acordes de uma canção, o terno embalo da primeira mão. Esse canto, sim, será nosso, a lembrança de uma raiz profunda que não foram capazes de nos arrancar. Essa voz nos dará a força de um novo princípio e, ao escutá-la os cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes abraçarão a vida com o ingénuo entusiasmo dos namorados. Tudo isso se fará se formos capazes de nos despirmos deste tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal que esta guerra nos converteu."

07/03/2010

      TABACARIA

    Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    Janelas do meu quarto,
    Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
    (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
    Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
    Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
    Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
    Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
    Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
    Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

    Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
    Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
    E não tivesse mais irmandade com as coisas
    Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
    A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
    De dentro da minha cabeça,
    E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

    Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

    Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
    Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
    E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
    Gênio? Neste momento
    Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
    E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
    Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
    Não, não creio em mim.
    Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
    Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
    Não, nem em mim...
    Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
    Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
    Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
    Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
    E quem sabe se realizáveis,
    Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
    O mundo é para quem nasce para o conquistar
    E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
    Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
    Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
    Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
    Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
    Ainda que não more nela;
    Serei sempre
    o que não nasceu para isso;
    Serei sempre só
    o que tinha qualidades;
    Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
    E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
    E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
    Crer em mim? Não, nem em nada.
    Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
    O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
    E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
    Escravos cardíacos das estrelas,
    Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
    Mas acordamos e ele é opaco,
    Levantamo-nos e ele é alheio,
    Saímos de casa e ele é a terra inteira,
    Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

    (Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
    Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
    Come, pequena suja, come!
    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
    Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
    Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

    Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
    A caligrafia rápida destes versos,
    Pórtico partido para o Impossível.
    Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
    Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
    A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
    E fico em casa sem camisa.

    (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
    Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
    Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
    Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
    Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
    Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
    Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
    Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
    Meu coração é um balde despejado.
    Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
    A mim mesmo e não encontro nada.
    Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
    Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
    Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
    Vejo os cães que também existem,
    E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
    E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

    Vivi, estudei, amei e até cri,
    E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
    Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
    E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
    (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
    Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
    E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

    Fiz de mim o que não soube
    E o que podia fazer de mim não o fiz.
    O dominó que vesti era errado.
    Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
    Quando quis tirar a máscara,
    Estava pegada à cara.
    Quando a tirei e me vi ao espelho,
    Já tinha envelhecido.
    Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
    Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
    Como um cão tolerado pela gerência
    Por ser inofensivo
    E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

    Essência musical dos meus versos inúteis,
    Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
    E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
    Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
    Como um tapete em que um bêbado tropeça
    Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

    Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
    Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
    E com o desconforto da alma mal-entendendo.
    Ele morrerá e eu morrerei.
    Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
    A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
    Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
    E a língua em que foram escritos os versos.
    Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
    Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
    Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

    Sempre uma coisa defronte da outra,
    Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
    Sempre o impossível tão estúpido como o real,
    Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
    Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

    Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
    E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
    Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
    E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

    Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
    E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
    Sigo o fumo como uma rota própria,
    E gozo, num momento sensitivo e competente,
    A libertação de todas as especulações
    E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

    Depois deito-me para trás na cadeira
    E continuo fumando.
    Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

    (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
    Talvez fosse feliz.)
    Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
    O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
    Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
    (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
    Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
    Acenou-me adeus, gritei-lhe
    Adeus ó Esteves!, e o universo
    Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

    Álvaro de Campos, 15-1-1928

04/02/2010

pensamento do dia:


QUE IMPORTA O PASSADO SE TEMOS O FUTURO NAS MÃOS ??!!


esta é a sequência de uma noite de choro, nervos, raiva e nostalgias.
"Tudo" o que queremos é nosso. não sei quanto tempo isto dura, mas sim estou FELIZ :)

26/01/2010

....... para que nunca acabe esta procura....

ponham os olhos nisto :)

(...) Para conservar o amor, é, pois, indispensável manter constantemente um comportamento afável e solícito; não pode, todavia, cair-se na rotina, que é mãe do desleixo. O amor, afiança o poeta [ Ovídio ], requer uso e, para tanto, capacidade inventiva. Avivar nela as saudades é um método com resultados comprovados, mas sem abusar. Ou seja, uma ausência é vantajosa e estimula o desejo; se prolongada demais é nociva e conduz à busca de novo conforto.

Introdução de A ARTE DE AMAR, de Ovídio.

22/01/2010



Fotografia: JOsé António
PREFÁCIO

Querido leitor:


São horas de te receber no parteló da minha pequena Arca de Noé. Tens sido de uma constância tão espontânea e tão pura a visitá-la, que é preciso que me liberte do medo de parecer ufano da obra, e venha delicadamente cumprimentar-te uma vez ao menos. Não se pagam gentilezas com descortesias, e eu sou instintivamente grato e correcto.
Este livro teve a boa fortuna de te agradar, e isso encheu-me sempre de júbilo. Escrevo para ti desde que comecei, sem te lisonjear, evidentemente, mas também sem ser insensível às tuas reacções. Fazemos parte do mesmo presente temporal e, quer queiras, quer não, do mesmo futuro intemporal. Agora, sofremos as vicissitudes que o momento nos impõe, companheiros na presente realidade quotidiana; mais tarde, seremos o pó da História, o exemplo promissor ou maldito, o pretérito que se cumpriu bem ou mal. Se eu hoje me esquecesse das tuas angústias, e tu das minhas, seríamos ambos traidores a uma solidariedade de berço, umbilical e cósmica; se amanhã não estivéssemos unidos nos factos fundamentais que a posteridade há-de considerar, estes anos decorridos ficariam sem qualquer significação, porque onde está ou tenha estado o homem e preciso que esteja ou tenha estado toda a humanidade.
Ligados assim para a vida e para a morte, bom foi que o acaso te fizesse gostar destes Bichos. Apostar literáriamente no porvir é um belo jogo, mas é um jogo de quem já se resignou a perder o presente. Ora eu sou teu irmão, nasci quando tu nasceste, e prefiro chegar ao juízo final contigo, ao lado, na paz de uma fraternidade de raiz, a ter de entrar lá solitário como um lobo tresmalhado. Ninguém é feliz sozinho, nem mesmo na eternidade. De resto, um conto que te agradou, tem algumas probabilidades de agradar aos teus netos. Porque não hão-de eles tirar ninhos quando forem crianças? E, se tal não acontecer, paciência: ficarei um pouco triste, mas sempre junto de ti, firme, na consolação simples e honrada de ter sido ao menos homem do meu tempo.
És, pois, dono como eu deste livro, e, ao cumprimentar-te à entrada dele, nem pretendo sugerir-te que o leias com a luz da imaginação acesa, nem atrair o teu olhar para a penumbra da sua simbologia . Isso não é comigo, porque nenhuma árvore explica os seus frutos, embora goste que lhos comam. Saúdo-te apenas nesta alegria natural, contente por ter construído uma barcaça onde a nossa condição se encontrou, e onde poderemos um dia, se quiseres, atravessar juntos o Letes, que é, como sabes, um dos cinco rios do inferno, cujas águas bebem as sombras, fazendo-as esquecer o passado.

Miguel Torga

17/01/2010

Ela senta-se a uma mesa. Ela nunca o viu, e ainda mais do que ele nunca a viu a ela.
Ela olha-o. É inevitável. Está só, é belo e está cansado de estar só e tão belo como qualquer pessoa a morrer. E chora.
Para ela, ele é tão desconhecido como se não tivesse nascido. Ela deixa as pessoas com quem está. Vai para a mesa desse que acaba de entrar e que chora. Senta-se em frente dele. Olha-o.
Ele não vê nada dela. Nem que as suas mãos estão inertes sobre a mesa. Nem o sorriso desfeito. Nem que ela treme.
Que tem frio.

Ela ainda nunca o viu nas ruas da cidade. Pergunta-lhe o que tem. Ele diz que não tem nada. Nada. Ela que não se preocupe. A doçura da voz que de repente rasga a alma e podia fazer pensar que.
Ele não consegue deixar de chorar.
Ela diz-lhe:Gostava de o impedir de chorar. Ela chora. Ele não quer realmente nada. Não a ouve.
Ela pergunta-lhe se ele vai morrer, se é isso que tem, vontade de morrer, ela talvez podesse ajudá-lo. Queria que ele continuasse a falar. Ele diz que não, nada, ela que não preste atenção. Ela não pode fazer outra coisa, e fala-lhe.

Marguerite Duras, in OLhos azuis cabelo preto, p.11

16/01/2010






"há faces de homens que trazem almas de anjo ao de cima por entre aspectos do diabo. são faces sofridas, mas que não perdem o olhar dado por deus, coisa que espelha a alma."

In Remorso de Baltazar Serapião, p. 120
(... ) as mães são como lugares de onde deus chega. lugares onde deus está e a partir dos quais pode chegar até nós. porque só através delas nos encontramos aqui. e, por isso, não há mãe alguma que não mereça o céu porque, em verdade, as mães transportam o céu dentro delas, e multiplicam-no a custo, como um ofício, mesmo que dotadas de burrice grande ou estupidez perigosa.

Valter Hugo Mae, in Remorso de Baltazar Serapião, p. 73