26/01/2010

....... para que nunca acabe esta procura....

ponham os olhos nisto :)

(...) Para conservar o amor, é, pois, indispensável manter constantemente um comportamento afável e solícito; não pode, todavia, cair-se na rotina, que é mãe do desleixo. O amor, afiança o poeta [ Ovídio ], requer uso e, para tanto, capacidade inventiva. Avivar nela as saudades é um método com resultados comprovados, mas sem abusar. Ou seja, uma ausência é vantajosa e estimula o desejo; se prolongada demais é nociva e conduz à busca de novo conforto.

Introdução de A ARTE DE AMAR, de Ovídio.

22/01/2010



Fotografia: JOsé António
PREFÁCIO

Querido leitor:


São horas de te receber no parteló da minha pequena Arca de Noé. Tens sido de uma constância tão espontânea e tão pura a visitá-la, que é preciso que me liberte do medo de parecer ufano da obra, e venha delicadamente cumprimentar-te uma vez ao menos. Não se pagam gentilezas com descortesias, e eu sou instintivamente grato e correcto.
Este livro teve a boa fortuna de te agradar, e isso encheu-me sempre de júbilo. Escrevo para ti desde que comecei, sem te lisonjear, evidentemente, mas também sem ser insensível às tuas reacções. Fazemos parte do mesmo presente temporal e, quer queiras, quer não, do mesmo futuro intemporal. Agora, sofremos as vicissitudes que o momento nos impõe, companheiros na presente realidade quotidiana; mais tarde, seremos o pó da História, o exemplo promissor ou maldito, o pretérito que se cumpriu bem ou mal. Se eu hoje me esquecesse das tuas angústias, e tu das minhas, seríamos ambos traidores a uma solidariedade de berço, umbilical e cósmica; se amanhã não estivéssemos unidos nos factos fundamentais que a posteridade há-de considerar, estes anos decorridos ficariam sem qualquer significação, porque onde está ou tenha estado o homem e preciso que esteja ou tenha estado toda a humanidade.
Ligados assim para a vida e para a morte, bom foi que o acaso te fizesse gostar destes Bichos. Apostar literáriamente no porvir é um belo jogo, mas é um jogo de quem já se resignou a perder o presente. Ora eu sou teu irmão, nasci quando tu nasceste, e prefiro chegar ao juízo final contigo, ao lado, na paz de uma fraternidade de raiz, a ter de entrar lá solitário como um lobo tresmalhado. Ninguém é feliz sozinho, nem mesmo na eternidade. De resto, um conto que te agradou, tem algumas probabilidades de agradar aos teus netos. Porque não hão-de eles tirar ninhos quando forem crianças? E, se tal não acontecer, paciência: ficarei um pouco triste, mas sempre junto de ti, firme, na consolação simples e honrada de ter sido ao menos homem do meu tempo.
És, pois, dono como eu deste livro, e, ao cumprimentar-te à entrada dele, nem pretendo sugerir-te que o leias com a luz da imaginação acesa, nem atrair o teu olhar para a penumbra da sua simbologia . Isso não é comigo, porque nenhuma árvore explica os seus frutos, embora goste que lhos comam. Saúdo-te apenas nesta alegria natural, contente por ter construído uma barcaça onde a nossa condição se encontrou, e onde poderemos um dia, se quiseres, atravessar juntos o Letes, que é, como sabes, um dos cinco rios do inferno, cujas águas bebem as sombras, fazendo-as esquecer o passado.

Miguel Torga

17/01/2010

Ela senta-se a uma mesa. Ela nunca o viu, e ainda mais do que ele nunca a viu a ela.
Ela olha-o. É inevitável. Está só, é belo e está cansado de estar só e tão belo como qualquer pessoa a morrer. E chora.
Para ela, ele é tão desconhecido como se não tivesse nascido. Ela deixa as pessoas com quem está. Vai para a mesa desse que acaba de entrar e que chora. Senta-se em frente dele. Olha-o.
Ele não vê nada dela. Nem que as suas mãos estão inertes sobre a mesa. Nem o sorriso desfeito. Nem que ela treme.
Que tem frio.

Ela ainda nunca o viu nas ruas da cidade. Pergunta-lhe o que tem. Ele diz que não tem nada. Nada. Ela que não se preocupe. A doçura da voz que de repente rasga a alma e podia fazer pensar que.
Ele não consegue deixar de chorar.
Ela diz-lhe:Gostava de o impedir de chorar. Ela chora. Ele não quer realmente nada. Não a ouve.
Ela pergunta-lhe se ele vai morrer, se é isso que tem, vontade de morrer, ela talvez podesse ajudá-lo. Queria que ele continuasse a falar. Ele diz que não, nada, ela que não preste atenção. Ela não pode fazer outra coisa, e fala-lhe.

Marguerite Duras, in OLhos azuis cabelo preto, p.11

16/01/2010






"há faces de homens que trazem almas de anjo ao de cima por entre aspectos do diabo. são faces sofridas, mas que não perdem o olhar dado por deus, coisa que espelha a alma."

In Remorso de Baltazar Serapião, p. 120
(... ) as mães são como lugares de onde deus chega. lugares onde deus está e a partir dos quais pode chegar até nós. porque só através delas nos encontramos aqui. e, por isso, não há mãe alguma que não mereça o céu porque, em verdade, as mães transportam o céu dentro delas, e multiplicam-no a custo, como um ofício, mesmo que dotadas de burrice grande ou estupidez perigosa.

Valter Hugo Mae, in Remorso de Baltazar Serapião, p. 73