20/07/2009

Não há fim

Era uma ponte quase em ruínas. Atravessava-se a ponte e do outro lado estava o rio. Vi um velho sentado na ponte, no último pilar, com uma comprida cana de pesca presa entre as mãos. Parei o carro e fui ter com ele. « Os porcos dilatam com o calor», riu o velho apontando com o queixo para um animal enorme, meio afundado na lama, alguns metros abaixo. Se ele não me tivesse dito aquilo pensaria que era um hipopótamo.
Retorqui:
- Deve fazer muito calor neste lugar...
O venho riu-se às gargalhadas. Faltavam-lhe dentes. As gargalhadas, todavia, eram jovens, como se por baixo da pele grossa e enrugada se escondesse um rapaz com a dentadura completa, a cabeleira farta e o rosto liso, ainda imberbe. Explicou-me que, depois da ponte ter sido construida, o leito do rio se desviara umas dezenas de metros para o lado esquerdo, dando origem àquele particular extravio da razão. O rio recusara a ponte. Sempre que chovia a estrada ficava pelas àguas.
- Não há maneira de passar?
O velho encolheu os ombros. Não havia. Não, pelo menos enquanto chovesse, e estávamos em plena estação das chuvas. Fosse como fosse, quase nunca aparecia ninguém naquela estrada.
- Vai dar onde a estrada?
E ele sabia? Voltou a rir-se. O riso dele refrescava a alma, como tomar banho de mangueira após um dia de praia. Não sabia. nunca vira ninguém cruzar o rio vindo do outro lado.
- Então vou ter de voltar para trás?
Irrita-me voltar para trás. Viajo para saber onde as estradas vão dar. Prefiro seguir pelas estradas secundárias. Gosto dos caminhos de terra batida, das picadas abertas a custo entre espinheiras altas. Uma vez, algures no deserto do Namibe, encontrei uma estrada desenhada na rocha. Durante quilómetros e quilómetros o que havia era apenas o corpo exposto de uma rocha lisa, com a mesma cor alucinada dos crepúsculos, batida pelo vento áspero e pelo duro sol. Pequenos paralelepípedos cortados numa pedra escura, e colocados de dez em dez metros de ambos os lados da estrada, traçavam o percurso. Depois reapareceram as dunas, coroadas aqui e ali pelas rijas folhas de uma Welwitchia mirabilis, e o sonho terminou. Da mesma forma que um surfista procura a vida interia a onde perfeita, eu procuro a estrada. Provavelmente era aquela, mas não tenho uma única imagem que comprove a sua existência.
- Quer almoçar comigo?
A proposta apanhou-me de supresa. Disse-lhe que não. Depois corrigi:
- Onde?
Ele informou-se que havia um pequeno restaurante ali perto, mesmo à beira da estrada. Eu não vira restaurante nenhum. O velho desmontou a cana de pesca, arrumou os apetrechos num saco de couro e levantou-se. Mostrou-me a pescaria. Ajudei-o a colocar tudo na bagageira. O restaurante não era logo ali. Ficava a uns bons vinte quilómetros. Chamava-se O Máximo, o que me pareceu uma designação demasiado optimista, até compreender que era o nome do proprietário. O poroprietário, aliás, era ele mesmo, o velho pescador. Máximo mandou grelhar os peixes que trouxera do rio. Estavam bons, acompanhados por batatas cozidas e salada de alface e tomate. Quis saber como era ele para ali, porque decidira construir um restaurante num lugar tão remoto, junto a uma ponte que dava para uum rio. Máximo encolheu os ombros magros. Não fora ele quem construíra o restaurante. Ganhara-o ao jogo. Fora por causa do jogo, fugindo de credores, que se eentranhara no mato, até chegar àquele lugar sem nome. Contou-me isto enquanto almoçávamos, bebendo cerveja morna e sorrindo sempre.
- Quer jogar?
- Não, eu não jogo.
- É uma pena. Tencionava apostar o meu restaurante contra o seu carro. Se perdesse esperava pelo fim das chuvas, atravessava o rio a pé, e sguia viagem. Se ganhasse pegava no carro e voltava para trás, para a vida que deixei...
Eu não queria v0ltar para trás. Não queria regressar à vida que havia deixado. Hesitei um isntante e depois disse-lhe que sim, que estava disposto a jogar, que aceitava a aposta. Os olhos dele brilharam. Tirou dos bolsos das calças um par de dados muito gastos. Reparei que lhe tremiam os dedos, e que tinha as unhas manchadas de nicotina. Venceu-me sem dificuldade. Entreguei-lhe as chaves do carro e pedi um café. SEntia-me de repente muito cansado.
- Enfim é isto o fim?
- Não- respondeu-me Máximo sem perder o sorriso. - Não há fim. O que há são intervalos.
José Eduardo Agualusa
in, PASSAGEIROS EM TRÂNSITO.

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