17/09/2007

Em 1966, em Angola, um antílope ficou preso no lodo; e os guardas da reserva disseram que ele não conseguiria voltar a libertar-se do abraço da terra flutuante o peso atraiçoado do seu corpo. Eu ainda não sabia que existiam histórias assim, com baleias, com cavalos, com homens, comecei então a reconhecê-las e a remetê-las para aquele fim de tarde à beira da picada, exactamente no dia em que aprendi a assobiar.
Lembro-me de termos estado a fazer-lhe festinhas no focinho, ele deitara-se sobre o flanco esquerdo, silencioso e imóvel, olhava em frente, esperava. Até fizemos fotografias para guardar nos álbuns, as crianças e aquele bicho pesado, aquele bicho perdido, tão terrivelmente triste. Só depois é que reparámos nas lágrimas, grossas. O antílope quieto que ia morrer estava a chorar.


Furtado, José Afonso, Correia, Clara Pinto (s.d.), Canções das crianças mortas, Editora: Relógio D’Água.

Sem comentários: